A noção do “Direito à verdade” na Jurisprudência da Corte Interamericana dos Direitos do Homem
Fabia de Melo-Fournier*
(…) Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem todos de uma vez por todas. Norberto Bobbio1
Neste ano em que se comemoram os 66 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, considerada verdadeira “Carta Magna da Humanidade”², base sobre a qual se desenvolveram sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, inclusive o interamericano, parece-nos interessante nos debruçar sobre os pontos essenciais de uma das construções jurisprudenciais mais relevantes da Corte Interamericana (CIDH) nestes trinta e cinco anos de funcionamento³: trata-se do “direito à verdade”. Se o direito à verdade não nasceu na jurisprudência americana, foi, no entanto, a Corte Interamericana o primeiro órgão jurisdicional internacional a consagrá-lo, papel precursor que a própria Corte ressaltou em várias ocasiões4.
O direito à verdade é fundamentado na interpretação combinada do artigo 8° (garantias judiciais), artigo 25 (garantia de um recurso efetivo) e artigo 1° (obrigação dos Estados de garantir o gozo dos direitos humanos a todos aqueles sob sua jurisdição) da Convenção Americana de Direitos do Homem (CADH) e oriundo da análise de vários casos de desaparecimento forçado de pessoas5.
A existência de um “direito à verdade e informação” (right to the thruth and information) foi evocado, pela primeira vez, pela Comissão Interamericana dos Direitos do Homem (CoIDH) durante o julgamento do caso Castillo Paez c. Peru6. Naquele momento a CIDH recusou-se a analisar a questão de maneira autônoma, sob o argumento de que o direito à verdade não havia sido vislumbrado na Convenção Americana dos Direitos do Homem (CADH), embora pudesse resultar da doutrina e da jurisprudência internacionais. Além disso, segundo à Corte, ele seria ínsito ao dever de investigar que havia sido reconhecido ao Estado Peruano7.
Três anos após, o direito à verdade foi finalmente consagrado pela Corte Interamericana na decisão Bámaca Velásquez c. Guatemala8. Nela, a CIDH definiu o “direito à verdade”, como sendo «o direito da vítima ou de seus familiares próximos de obter a clarificação dos fatos relacionados com as violações, bem como, a declaração das responsabilidades delas decorrentes pelos Órgãos competentes do Estado, através da investigação e julgamento estabelecidos nos artigos 8 e 25 da Convenção»9. Mais tarde, a CIDH complementou que o direito à verdade incluía ainda, o direito das vítimas e de sua família de verem os responsáveis pelas violações de seus direitos humanos, não só processados criminalmente, mas também “sancionados”, bem como, o direito de serem indenizados pelos prejuízos suportados10.
O direito à verdade foi afirmado diversas vezes pela Corte como um meio importante de reparação pelas violações de Direito sofridas, cite-se, por exemplo, passagem da sentença do caso Hermanos Gómez Paquiyauri c. Pérou11, na parte que dispunha sobre a reparação dos prejuízos:
230. La Corte considera que las víctimas de graves violaciones de derechos humanos y sus familiares, en su caso, tienen el derecho a conocer la verdad. En consecuencia, los familiares de las víctimas en el presente caso tienen el derecho a ser informados de todo lo sucedido en relación con dichas violaciones. Este derecho a la verdad ha venido siendo desarrollado por el Derecho Internacional de los Derechos Humanos; al ser reconocido y ejercido en una situación concreta, ello constituye un medio importante de reparación. Por lo tanto, da lugar a una expectativa que el Estado debe satisfacer a los familiares de la víctima».
O direito à verdade parece-nos ter dupla natureza: substancial e instrumental. Substancial quando garante o direito ao esclarecimento dos fatos, à verdade propriamente dita (right to the truth and information); e instrumental quando impõe ao Estado obrigações de fundo investigativo e processual com observância das garantias de um devido processo legal (art. 8 CADH) para se chegar a essa verdade, inclusive, a de que a clarificação dos fatos, julgamento e sanção dos responsáveis se façam num prazo razoável12.
Com efeito, a Corte afirma que nos casos de desaparecimentos forçados, o Estado tem dever de investigar de ofício; não podendo se contentar com uma investigação formal, impondo quase que uma obrigação de resultado ao Estado, vejamos:
61. Esta Corte ha señalado reiteradamente que la obligación de investigar debe cumplirse “con seriedad y no como una simple formalidade condenada de antemano a ser infructuosa”. La investigación que el Estado lleve a cabo en cumplimiento de esta obligación “[d]ebe tener un sentido y ser asumida por el [mismo] como un deber jurídico propio y no como una simple gestión de intereses particulares, que dependa de la iniciativa procesal de la víctima o de sus familiares o de la aportación privada de elementos probatorios, sin que la autoridad pública busque efectivamente la verdad”.(grifo nosso)
65. La investigación que deben emprender los Estados debe ser realizada con la debida diligencia, puesto que debe ser efectiva. Esto implica que el órgano que investiga debe llevar a cabo, dentro de un plazo razonable, todas aquellas diligencias que sean necesarias con el fin de intentar obtener un resultado.”(grifo nosso)13
No entanto, este dever de ofício não elide o direito das vítimas ou de seus familiares de exercer papel ativo no processo, com base nas garantias judiciais do artigo 8° da CADH. De fato, para a Corte, o devido processo legal traz garantias judicias tanto ao acusado, quanto às vítimas e seus familiares:
63. Este Tribunal también ha señalado que del artículo 8 de la Convención se desprende que las víctimas de las violaciones de los derechos humanos, o sus familiares, deben contar con amplias posibilidades de ser oídos y actuar en los respectivos procesos, tanto en procura del esclarecimiento de los hechos y del castigo de los responsables, como en busca de una debida reparación.14
Em última análise, o direito à verdade desafia os Estados a manterem um nível de “qualidade” da Justiça, ditado pela sua eficiência e concretude. Ideia reforçada pela obrigação imposta aos Estados de lutarem contra a impunidade no continente, pois do contrário vai se propiciar a “repetição crônica das violações de direitos humanos e o total desamparo das vítimas e de seus familiares”15.
Aliás, sob esse argumento, o Chile foi condenado pela CIDH por ter editado lei de anistia que impedia o exercício de sua obrigação de investigar, processar e sancionar o desaparecimento forçado do senhor Almonacid Arellano16. Vale lembrar que no caso Barrios Altos c. Peru, a CIDH já havia afirmado que:
[…]son inadmisibles las disposiciones de amnistía, las disposiciones de prescripción y el establecimiento de excluyentes e responsabilidad que pretendan impedir la investigación y sanción de los responsables de las violaciones graves de los derechos humanos tales como la tortura, las ejecuciones sumarias, extralegales o arbitrarias y las desapariciones forzadas, todas ellas prohibidas por contravenir derechos inderogables reconocidos por el Derecho Internacional de los Derechos Humanos.17
Podemos afirmar que o direito à verdade, pela indissociabiliade declarada dos artigos 8°, 25 e 1° da CADH consubstancia-se no direito de acesso à Justiça. Nas palavras da Corte Interamericana:
La Corte ha sostenido que, según la Convención Americana, los Estados Partes están obligados a suministrar recursos judiciales efectivos a las víctimas de violaciones de los derechos humanos (artículo 25), recursos que deben ser sustanciados de conformidad con las reglas del debido proceso legal (artículo 8.1), todo ello dentro de la obligación general, a cargo de los mismos Estados, de garantizar el libre y pleno ejercicio de los derechos reconocidos por la Convención a toda persona que se encuentre bajo su jurisdicción (artículo 1.1).18
Mais recentemente, no caso Gomes Lund e outros c. Brasil19, a Corte Interamericana afirmou que o direito à verdade se vincula tanto ao acesso à Justiça, quanto ao direito de buscar e receber informações, integrando o artigo 13 da CADH (direito à informação) à noção do direito à verdade.
Ressalte-se que não se pode esquecer que quando a Convenção Americana entrou em vigor, em 18 de julho de 1978, vários países da América Latina viviam sob regimes ditatoriais inspirados na doutrina norte-americana, dita da “segurança nacional”20. Este foi, aliás, o primeiro triunfo do sistema interamericano de proteção dos direitos do Homem e um de seus maiores desafios: afirmar estes direitos num momento histórico marcado pelo seu desconhecimento. Por isso, as palavras de Norberto Bobbio que epigrafam esse trabalho não poderiam ser mais apropriadas: o direito à verdade é direito fundamental sim, mas é sobretudo, um direito histórico, nascido da necessidade de assegurar o acesso a uma Justiça de qualidade “contra velhos poderes”, em toda a sua amplitude, no continente americano.
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*A autora é Promotora de Justiça; Doutora em Direito, pela Sorbonne; Mestre em Direito Penal e Política Criminal na Europa, pela Sorbonne; Mestre em Instituições Jurídico-Políticas pela UFPA; Formação em Direito Internacional Penal pela Law Clinic de Paris (Laboratório Europeu de Apoio às Cortes Internacionais de Haia); Membro da Associação de Pesquisas Penais Européias – ARPE; Membro do Comitê Estadual de Educação em Direitos Humanos e Professora-Tutora de Gestão para resultados em Saúde pelo Instituto Interamericano para Desenvolvimento Econômico -Social – INDES/BID.
1 In: A Era dos Direitos. Nova ed., Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 25
2 Eleanora Roosevelt apud JOHNSON (Glen); SYMONIDES (Janusz). La Déclaration universelle des droits de l’homme : 40 e . Anniversaire, 1948-1988. Paris : l’Harmattan : UNESCO, 1990, p. 129. Eleanora Roosevelt, esposa do Presidente Americano Francklin Roosevelt, juntamente com o jurista francês René Cassin, tiveram papel decisivo na elaboração e adoção da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
3 A CIDH reuniu-se pela primeira vez em 29-30 de junho de 1979, mas sua primeira produção jurisprudencial foi a Opinião Consultiva(OC) n°01/82 de 24/09/82, Série A, n°1, sobre o significado da expressão « otros tratados », objeto da função consultiva da Corte.
4 O conceito de um direito à verdade é historicamente enraizado no Direito Internacional Humanitário. Ele é previsto, expressamente, no art. 32 do Protocolo Adicional às Convenções de Genebra de 1949, sobre “a proteção das vítimas de conflitos armados internacionais”, a qual reconhece às famílias o direito de conhecer o destino de seus membros.
5 Estabelece o artigo II da Convenção Americana sobre desaparecimento forçado de pessoas (de 09/06/1994): « Para os efeitos desta Convenção, entende-se por desaparecimento forçado a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que actuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes ».
6 CIDH, Castillo Páez c. Peru, sentença de 03/11/1997, série C, n°34.
7 CIDH, Castillo Páez c. Peru, sentença de 03/11/1997, série C, n°34, §§86-87 : “§86. (…)The second argument refers to the formulation of a right that does not exist in the American Convention, although it may correspond to a concept that is being developed in doctrine and case law, which has already been disposed of in this Case through the Court’s decision to establish Peru’s obligation to investigate the events that produced the violations of the American Convention”.
8 CIDH, Caso Bámaca Velásquez c. Guatemala, sentença de 25/11/2000, série C, n°70.
9 CIDH, Bámaca Velásquez c. Guatemala, sentença de 25/11/2000, série C, n°70, §201: “201. Nevertheless, in the circumstances of the instant case, the right to the truth is subsumed in the right of the victim or his next of kin to obtain clarification of the facts relating to the violations and the corresponding responsibilities from the competent State organs, through the investigation and prosecution established in Articles 8 and 25 of the Convention ». O mesmo foi reafirmado pela Corte IDH, no caso Barrios Altos c. Pérou, sentença de 14/03/2001, série C, n°75, §48.
10 CIDH, Las Palmeras c. Colombie, sentença de 06/12/2001, Série C, n°67 §65: “(…)to have the persons responsible for these unlawful acts prosecuted; where appropriate, they have the right to have the proper punishment applied to the responsible parties, and they are entitled to be compensated for the damages and injuries they have suffered” (grifos nossos).
11 CIDH, Hermanos Gómez Paquiyauri c. Peru, sentença de 08/07/2004, Série C, n°110.
12 CIDH, Caso Masacre de Pueblo Bello c. Colômbia, sentença de 31/01/2006, Série C, n°140, §171.
13 CIDH, Hermanas Serrano Cruz c. El Salvador, sentença de 01/03/2005, Série C, n°120, §§61 e 65. A obrigação de investigar deve se inspirar dos princípios diretores elaborados no Manual sobre a Prevenção e Investigação Efetiva de Execuções Extrajudiciais, Arbitrárias e Sumárias das Nações Unidas (cf. CIDH, Massacre de Mapiripán c. Colombie, sentença de 15/09/2005, §224).
14 CIDH, Hermanas Serrano Cruz c. El Salvador, sentença de 01/03/2005, Série C, n°120, §63.
15 Caso 19 Comerciantes c. Colombia, sentença de 05/07/2004, Série C, n°109, §175. A propósito, a
CIDH conceitua a impunidade como “la falta en su conjunto de investigación, persecución, captura,
enjuiciamiento y condena de los responsables de las violaciones de los derechos protegidos por la
Convención Americana”.
16 CIDH, Almonacid Arellano y otros c. Chile, sentença de 26/09/2006, Série C, n°154, §29.
17 CIDH, Barrios Altos c. Peru, sentença de 14/03/2001, Série C, n° 75, §41.
18 CIDH, Masacres de Ituango c. Colômbia, sentença de 01/07/2006, Série C, n°148, §287.
19 CIDH, Gomes Lund y otros c. Brasil (Guerrilha do Araguaia), sentença de 24/11/2010, Série C, n°219, §201.
20 A principal preocupação da doutrina da “Segurança Nacional” era de assegurar o “contrôle do território interior”, daí se originando a noção de inimigo interior, comandado por potências estrangeiras no seio do país (cf. CAPELLER, Wanda. L’engranage de la représsion. Stratégies sécuritaires et politiques criminelles au Brésil. Paris : LGDJ, Collection Droit et Société, 1995, p. 107). Por exemplo, no Brasil, país piloto desta política, o período de ditatura militar vai de 1964 à 1985 ; na Argentina de 1976 à 1983; no Chile de 1973 à 1990; no Uruguay de 1973 à 1984.